segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Cheiros...


Para ela, os cheiros sempre foram importantes. Percebia grande parte do mundo através deles. Ao chegar a um restaurante, por exemplo, rapidamente notava a qualidade da comida; ao chegar o prato, adivinhava seus condimentos e a forma como fora preparado; ao retornar para casa, reconhecia o cheiro de banho do marido ao deitar — o mesmo há 30 anos –, assim como o cheiro da cama ao acordar. Havia também os cheiros ruins, que a afastavam. Ela dizia que baratas tinham determinado odor, assim como o pó da casa. Seu marido balançava negativamente a cabeça… Ora, cheiro de barata…


Impossível dizer se era seu sentido mais importante, mas era aquele do qual mais se orgulhava; sabia que o fato de ser excelente cozinheira devia-se à habilidade olfativa, um talento discreto e pouco considerado, mas que nunca a abandonara ou fora-lhe hostil. Tudo começou em sua infância no interior; corria à cozinha para sentir mais forte o cheiro do pão que sua mãe fazia para vender nas padarias; ficava feliz ao sentir entrar pelas janelas as delícias da terra molhada no início da estação das chuvas. Até hoje, quando os primeiros pingos batiam na janela de seu apartamento na cidade grande, sua memória trazia-lhe a fragrância da terra carente e dos telhados empoeirados, sugerindo felicidade e risos.

Hoje, ao acordar, veio-lhe à memória um cheiro inesquecível. O do perfume “Toque de Amor”. Ainda hoje, o vidro é o mesmo de sua trinta anos atrás. Ela o tinha visto pela primeira vez no quarto da irmã mais velha de uma amiga.

Numa quente tarde de sábado, conseguiu entrar sozinha no quarto da moça. Estava com um pouco de medo, mas era-lhe necessário olhar de perto aquele perfume. No quarto havia uma penteadeira algo aristocrática para a simplicidade daquela gente e lá estava, bem no meio, uma bombinha para borrifar perfume, algo lindíssimo, com uma cordinha púrpura na ponta. E, ao lado, o vidro de “Toque de Amor” da Avon. Aos quatorze anos, sua pele ainda não conhecera um perfume de verdade, apenas sabonetes e talco, quando havia. O maior luxo de sua família de raras posses permitia-se era a Água de Colônia, apenas usada com parcimônia em ocasiões especiais. Ela olhava o vidro e sentia pela primeira vez o desejo irrefreável de caminhar rente às pessoas pelas ruas da cidadezinha, deixando uma leve fragrância que as faria voltarem a cabeça.

A partir daquele momento, o vidrinho passou a povoar sem tréguas sua imaginação. Dali a dois meses depois, haveria a de formatura do ginásio. Iria usar um vestido novo, amarelo, com pequenas tranças de tecido realçando o decote, uma obra de carinho costurada por sua mãe. Mas sua noite de princesa seria incompleta sem o “Toque de Amor”, garantia absoluta de sucesso.

Criou coragem e foi falar com a privilegiada proprietária do perfume; expôs a importância de uma leve borrifada do “Toque”. Sua resposta foi um fraco não, disse que, se cedesse, teria também que aspergir ou pingar ao menos uma gota em cada irmã, que até então não tinham merecido tamanha distinção. Jurou segredo absoluto, mas a outra não aceitava. Passada uma semana, ela lhe propôs não apenas um, mas três borrifos.

Em troca, ela apenas precisaria levar uma carta até um endereço comercial na Pinheiro Machado. Fácil demais! No grande dia, deu uma passadinha na casa da amiga e pôs na bolsa do colégio o desejado aparato. “Três borrifadas só”, ouvi-a repetir, “se colocares mais, fica insuportável de tão forte. Não dá para chegar perto!”. Então, já vestida para o baile, recebeu de si mesma as três gloriosas borrifadas e foi para a festa de formatura. No salão de festas do colégio, sobre o piso vermelho de cimento queimado, dançou embalada por um conjunto estreante da própria cidade: eles arrasaram em covers de “Renato e seus Blue Caps” e Jerry Adriani.

Foi uma noite inesquecível. Dançou “Feche os Olhos” com um menino que nunca tinha visto e que certamente sentira o “Toque de Amor” em seu pescoço e no colo cheio de trancinhas amarelas aspergidas.

Feche os olhos e sinta um beijinho agora
De alguém que não vive sem você
Que não pensa e não gosta
De outra menina e tem medo de lhe perder
Na semana seguinte, pagou a dívida. O homem era gerente da agência do Banco do Brasil da cidade. Era bonito, de meia idade. Muito velho, em sua opinião.

Dois meses depois, toda a cidade comentava. A esposa traída fez todo alarde possível. A patrocinadora do perfume, aos 19 anos, foi expulsa de casa. Passou a morar com uma tia na capital e o moço acabou transferido. Nunca mais se soube da moça e ela nunca mais usou “Toque de Amor”.

Lore Zingiretako

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